sexta-feira, 4 de agosto de 2000

A democracia e os partidos políticos no Brasil

Acompanhamos nos últimos meses a escolha dos candidatos a prefeito de Porto Alegre, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), bem como em diversos outros municípios gaúchos, através de um sistema denominado de "prévias", onde os eleitores filiados a tais partidos puderam escolher dentre seus líderes aqueles que acreditavam representar de forma mais adequada o projeto político da sua facção.
Há nessa prática um elemento novo, cuja reflexão não foi devidamente efetivada pelos analistas políticos da grande imprensa, até mesmo por precisarmos levar em consideração que a universalização de tal modelo entre os partidos políticos vêm ocorrendo somente no RS.
Todos sabemos que a estrutura partidária brasileira apresenta problemas: a falta de fidelidade partidária, a facilidade de organização de partidos através de práticas cartoriais, a proliferação de partidos políticos, que não sendo um problema em si mesmo - pois a liberdade de organização política é condição para a democracia - torna-se um óbice à governabilidade, dentre outros ocasionados pela legislação permissiva, que vem sendo modificada de forma casuística desde a abertura democrática.
Porém, dentre as inúmeras distorções no sistema partidário, causadas por períodos intercalados de democracia e ditaduras, há uma não tematizada suficientemente: a história dos partidos políticos no Brasil tem sido, à esquerda ou à direita, a história das oligarquias políticas.
Poderíamos ilustrar tal afirmação através do livro do alemão Roberto Michels, Sociologia dos partidos políticos nas modernas democracias - ensaio sobre as tendências oligárquicas dos grupos, escrito em 1910, onde o autor procura demonstrar que os partidos políticos europeus, pela forma que estavam organizados no início do século, levavam a uma negativa cristalização de lideranças - os chefes inamovíveis - que exerciam sobre a massa de filiados um poder férreo.
No Brasil, a história política tem sido marcada, desde a República Velha, pela existência de partidos como representantes das elites econômicas regionais tradicionais, por um lado, e por partidos altamente centralizados e comandados por burocracias inamovíveis, no caso dos partidos de esquerda de tradição comunista. Sendo em ambos os casos caracterizados pela falta de democracia interna, ou melhor, pela falta de um espaço público interno aos partidos, a partir do qual pudessem viabilizar-se a construção, atualização e articulação de programas políticos reais - e não meramente formais - e, fundamentalmente, a escolha, através de métodos democráticos, das lideranças que lhe darão substância.
Max Weber afirmou em Economia e Sociedade a existência de três formas puras, tipos ideais de dominação: a) de caráter racional, decorrente da crença na legalidade das normas jurídicas; b) de caráter tradicional, que se dá pelo hábito cotidiano da santidade das tradições legadas; c) de caráter carismático, baseada na autoridade adquirida pelo mérito ou heroísmo de uma pessoa.
A característica essencial da modernidade é a crescente racionalização da atividade política, que leva à fundação de critérios outros de legitimidade que não somente o carisma dos líderes ou a tradição, apontando para uma crescente despersonalização do exercício do poder.
Assim sendo, práticas de partidos políticos organizados de tal forma que comitês centrais tomam as decisões em detrimento da participação dos filiados, ou um grupo de líderes históricos - comitês de notáveis - escolhem os caminhos e os candidatos, ou ainda, partidos articulados por coronéis que tomam as decisões e afastam seus desafetos das mais diversas formas, estão sendo soterradas pelos novos procedimentos.
Por essas reflexões, devemos saudar as pequenas revoluções que vêm ocorrendo no RS, onde a maioria dos partidos políticos demonstraram, na fase preparatória às eleições municipais deste ano, que caminham a passos largos - alguns há mais tempo e de forma mais rápida - em direção à democratização interna e à criação de espaços públicos efetivos que possibilitem a consolidação de programas e a renovação de lideranças.

quarta-feira, 7 de junho de 2000

Os bancos estatais federais e a experiências dos créditos populares

Recentemente, em uma auditoria contratada pelo governo federal e empreendida pela Consultoria Booz Allen, ficou demonstrado que nenhum dos cinco bancos federais - Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, Banco da Amazônia e Banco do Nordeste do Brasil - têm controle efetivo sobre o risco de seus empréstimos e é eficaz na recuperação dos créditos inadimplentes, aplicando muito mal o dinheiro dos contribuintes.
A consultoria aponta que a mistura entre as atividades comerciais e de fomento nesses bancos, e a falta de publicidade destas características ao público, têm comprometido a atuação de tais instituições.
A auditoria comprovou um fato que já foi cantado aos quatros cantos desse país: a promiscuidade das relações entre o sistema financeiro estatal, os empresários e as oligarquias rurais.
Os sucessivos governos brasileiros da era democrática têm utilizado os bancos estatais para pagar favores aos grupos econômicos que os têm financiado nas campanhas eleitorais, através de concessões de empréstimos sem às devidas garantias, pela não cobrança das dívidas vencidas, pela filantrópica forma de renegociar as dívidas, dentre outros mecanismos fartamente divulgados nas sucessivas e semanalmente esquecidas manchetes-escândalos da imprensa brasileira.
O livro de Mário Sérgio Conti, Notícias do Planalto - a imprensa e Fernando Collor, demonstra de forma didática, através do recorte das notícias divulgadas pelos principais meios de comunicação do país no período Collor, os procedimentos adotados pelo governo federal nesse sentido, prática, aliás, que permanece rotineira nos primeiro e segundo mandato do atual presidente da República.
A gravidade de tal situação tem sido utilizada constantemente para desacreditar tais instituições com o óbvio objetivo de privatizá-las, ação que, sem entrar em debates ideológicos a respeito da necessidade ou não de manutenção de bancos estatais, não responde a uma questão crucial para o desenvolvimento do Brasil: como estimular a poupança e financiar a atividade produtiva do país, de forma a gerar empregos e sustentabilidade ?
Em que pesem as críticas maliciosas e mal-intencionadas a respeito dos bancos estatais, é preciso que se diga que a atual estrutura produtiva - agrícola, comercial e industrial - foi financiada por tais instituições nas décadas em que ainda se operava politicamente vislumbrando um projeto nacional.
Paradoxalmente, nesses tempos em que nossas instituições públicas federais são destruídas pela sanha predatória dos dirigentes de plantão, Estados e municípios demonstram de fato a necessidade e possibilidade de manutenção de mecanismos públicos de financiamento à atividade produtiva, através da democratização das relações entre a esfera estatal e a iniciativa privada.
O Portosol, em Porto Alegre (RS), emprestou desde sua fundação em 1996 R$ 20 milhões através de pequenos empréstimos - com valores que variam de R$ 200,00 a R$ 15 mil - com uma taxa de inadimplência de 3,5%.
Tal instituição, fundada inicialmente como organização não-governamental, recebeu um aporte de R$ 700 mil da Prefeitura de Porto Alegre, R$ 350 mil do governo do Estado do RS, e mais R$ 530 mil de duas instituições estrangeiras - a Interamerican Foundation (IAF) e a Deutschen Gesellschaft Für Technische Zusammenarbeit (GTZ), e hoje é completamente auto-suficiente.
Outras instituições como o Banco do Povo (Fundo de Crédito Popular) do Estado de São Paulo, Serra Sol em Serra Negra do Norte (RN), Banco Popular de Ipatinga (MG), o Banco do Povo de Crédito Solidário de Santo André (SP), têm comprovado que a administração de recursos públicos de forma descentralizada, com a devida fiscalização da sociedade civil - é preciso que se diga que algumas das instituições citadas possuem em seus conselhos consultivos ou fiscais, representantes da comunidade, tendo como foco pequenos e médios empresários, facilitando a concessão de empréstimos com a flexibilização das garantias, pode ser uma resposta à situação dos bancos estatais federais.
Os Bancos dos Povos, como são conhecidos têm, sem alarde, conseguido resultados muito mais significativos do que os programas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, que montado nos recursos do FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador - alcançou a proeza de financiar até "programas de reestruturação" de empresas, eufemismo empregado para a geração de desemprego, além de participar de forma agressiva, para nossa perplexidade, nas privatizações das estatais.
Tais iniciativas demonstram a necessidade, mais do que urgente, de democratizar as relações do Estado brasileiro com a sociedade civil, através de mecanismos que promovam a participação dos cidadãos na gestão do patrimônio público, de forma a desburocratizar e dar transparência às políticas públicas, retórica fartamente empregada e quotidianamente negada na esfera federal.
Nossas instituições bancárias estatais, previdência pública, fundos constitucionais, poderiam estar financiando o desenvolvimento ao invés de constituírem o nó górdio de nosso desequilíbrio fiscal.
As experiências relatadas, mesmo diante da sua falta de escala em relação aos problemas desse país, iluminam um caminho diferente desse que nos acostumamos a ver e ouvir nos meios de comunicação. Constituem uma provocação para o "Brasil de baixo", de que há possibilidades de mudanças, mesmo com toda a má vontade do "Brasil de cima".

domingo, 2 de abril de 2000

A imprensa brasileira e a democracia: crônica de um liberalismo tupiniquim

Dois fatos ocorridos no final de 1999, de proporções diversas, chamaram a atenção do cidadão brasileiro atento, cujas repercussões ainda estão por merecer uma reflexão mais séria e detida - acompanhada, por certo, de ações que busquem neutralizar seus efeitos perversos: (a) o jornalista e ex-diretor da revista VEJA, Mário Sérgio Conti, publica o livro Notícias do Planalto - A imprensa e Fernando Collor, através do qual pretende explicar a relação dos jornalistas, repórteres e proprietários de meios de comunicação com a ascensão do ex-presidente da República; (b) o jornalista Carlos Alberto de Souza tem o título do seu livro, O fundo do espelho é outro - quem liga a RBS liga a Globo, fruto de dissertação de mestrado na UFSC, censurado pela Editora da Universidade do Vale do Itajaí sob pressão da Rede Brasil Sul , sendo publicado posteriormente com O fundo do espelho é outro - quem liga a ... , onde explica a inserção da RBS em Santa Catarina como expressão dos interesses da Rede Globo.
Estes dois "acontecimentos editoriais", seguidos de suas intenções - o primeiro motivado em interpretar a história política recente do país de forma a abrandar a participação da Rede Globo e da Revista VEJA na eleição de Fernando Collor, propósito em que foram acompanhados pelos mais importantes órgãos da imprensa nacional; e o segundo impulsionado pelo interesse em compreender o papel da RBS na região sul do Brasil - intenção da qual foi parcialmente censurado -, fazem lembrar de uma velha reflexão de um aristocrata francês - Alexis de Tocqueville - nascida de sua viagem aos Estados Unidos da América em 1835, consubstanciada no clássico A Democracia na América.
Tocqueville observa a nascente democracia norte-americana e a forma como seus cidadãos organizam a imprensa tecendo os seguintes comentários: "Todo poder aumenta a ação das suas forças à medida que centraliza a sua direção; é essa uma lei geral da natureza, que o exame demonstra ao observador e que um instinto mais certo ainda sempre fez conhecer aos menores déspotas. Na França, a imprensa reúne duas espécies de centralização distintas. Quase todo seu poder está concentrado num mesmo lugar e por assim dizer nas mesmas mãos, pois os seus órgãos são muito pouco numerosos. (...)Nem uma nem outra das duas espécies de centralização de que acabo de falar existe na América. Os Estados Unidos não têm capital: as luzes como o poder acham-se disseminados em todas as partes daquela vasta região; os raios da inteligência humana em lugar de partir de um centro comum, crescem , pois, em todos os sentidos; os americanos não situaram em parte alguma a direção geral do pensamento, assim como não o fizeram com a direção dos negócios públicos."
Podemos perceber nas palavras de Tocqueville um dos elementos que passou a caracterizar as democracias nascidas na era moderna: o desenvolvimento de uma imprensa livre como garantia de uma sociedade pluralista, princípio que foi, e continua sendo em muitos países, uma preocupação dos governos e da sociedade. Pressuposto que fundamenta na Europa desse século uma legislação altamente restritiva à concentração de meios de comunicação nas mãos de um mesma empresa - através do impedimento de propriedade simultâneas de rádio, jornal e TV - ou à concentração de audiência nacional - com a obrigatoriedade de um percentual alto de produções regionais.
No Brasil, terra em que o liberalismo foi fruto da verve discursiva de bacharéis, funcionando como sala de estar ao patrimonialismo articulado com o poder exercido de forma autoritária, a história dos meios de comunicação foi, e continua sendo, mesmo após a modernização das redações, uma ilustração de que os interesses econômicos da elite dirigente estão sempre em primeiro lugar.
É muitíssimo claro que a realidade de Tocqueville do século XIX está bastante transformada, na medida em que o final do século XX acompanhou uma grande concentração dos meios de comunicação nos países centrais, fundamentalmente nos Estados Unidos - através de fusões que promoveram a criação de verdadeiros gigantes das comunicações -, que fazem pensar em que medida os princípios liberais de uma imprensa livre ainda persistem. Porém, na grande maioria dessas nações há uma sociedade civil complexa e pluralista que não alcança similar no Brasil, onde percebemos experiências diversas como os jornais partidários da França e Itália e os canais públicos de televisão da Alemanha e Inglaterra.
No Brasil, em que pese o crescimento do número de jornais regionais, rádios comunitárias, órgãos de comunicação de sindicatos e ONG's, que têm atuado muitas vezes como guerrilheiros diante do exército organizado dos grandes órgãos, precisamos urgentemente pensar e construir meios de comunicação que possam ser opções de massa alternativos à ditadura da informação das grandes famílias.
A sociedade brasileira nesse início de século XXI pode ser muito mais complexa, rica e interessante do que esta caricatura pintada cotidianamente por quem não gostaria de nos ver e ouvir.

sexta-feira, 10 de março de 2000

A crise das instituiçõe internacionais

Em 1784 Immanuel Kant redigiu "Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita", no qual, além de firmar os princípios inaugurais da filosofia da história alemã, chama a atenção para o fato de que a possibilidade de estabelecimento de uma constituição civil perfeita em um determinado Estado dependeria da resolução do problema relativo às relações externas entre os Estados.
Ou seja, da mesma forma que no plano interno do Estado, o cidadão, para desenvolver a sua insociável sociabilidade, tem a necessidade de um poder exercido segundo leis que o obrigue a obedecer à vontade universalmente válida, no plano externo os Estados deverão "sair do estado sem leis dos selvagens para entrar numa federação de nações em que todo o Estado, mesmo o menor deles, pudesse esperar sua segurança e direito não da própria força ou do próprio juízo legal, mas somente desta grande confederação de nações, de um poder unificado e da decisão segundo leis de uma vontade unificada."
Tais reflexões formuladas pelo filósofo alemão em 1784 revestem-se de suma importância neste final de século XX, diante da crise das instituições internacionais fundadas no segundo pós-guerra e desde então responsáveis pelo "equilíbrio global" do planeta: Organização das Nações Unidas, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e, recentemente, Organização Mundial do Comércio.
Tais instituições foram criadas com o objetivo de administrar uma ordem institucional global que buscava: (a) no plano político, impedir novas aventuras expansionistas de países, a partir da mediação e, em últimos casos, uso da força, em conflitos internacionais, e (b) no plano econômico, impedir novas crises monetárias como a ocorrida nas décadas de 20/30.
Ocorre que neste final de século vivemos um perigoso paradoxo: por um lado todos temos uma crescente compreensão de que os problemas que enfrentamos são, por assim dizer, cada vez mais, expressões globais das relações mantidas entre Estados, grandes empresas e sistemas financeiros internacionalizados, aprofundados pela chamada terceira revolução industrial e tecnológica; por outro, vivemos uma crescente crise de legitimidade das instituições que poderiam viabilizar uma integração global satisfatória aos diversos povos.
Acompanhamos todos a Terceira Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio preparatória à Rodada do Milênio, ocorrida em Seatlle, Estados Unidos, em dezembro de 1999, e o profundo desacordo entre as propostas comerciais dos Estados Unidos e Europa e suas efetivas práticas comerciais, ao solicitarem a abertura dos mercados internacionais através de legislações liberalizantes e, contraditoriamente, promoverem barreiras aos produtos dos países "emergentes" que competem com seus produtos locais, bem como o fracasso geral nas negociações, com os principais atores questionando a legitimidade da OMC como fórum para dirimir os conflitos econômicos entre os Estados.
Mike Moore, Diretor-Geral da OMC, chegou a afirmar, aflito diante da confusão geral que foi a Conferência, que sem o sistema multilateral de comércio o mundo seria mais pobre, seria um mundo dos blocos concorrentes e da política de poder, um mundo mais conflitivo, mais incerto.
Recentemente acompanhamos a disputa entre os europeus e os norte-americanos em torno da direção do Fundo Monetário Internacional, com o veto dos segundos ao nome oferecido pelos alemães - um teuto-brasileiro, diga-se de passagem, pois Caio Koch-Weser nasceu no Paraná - , provocando uma crise diplomática ainda não resolvida, cujas razões encontram-se para além do nome sobre o qual recairá a responsabilidade do cargo, mais precisamente na indecisão sobre o papel do FMI no próximo milênio.
A Organização das Nações Unidas vive já há algum tempo em estado de insolvência, sem que seus principais sócios façam o repasse dos recursos devidos, provocando uma crise interna entre seus quadros.
Recentemente um diplomata brasileiro afirmou a jornalistas dos principais jornais nacionais que as principais decisões emanadas de tais órgãos são definidas segundo o interesse das principais potências participantes em suas direções e comunicadas como se fossem fruto de acordos gerais.
Enfim, em um final de século em que nossas percepções acerca dos problemas comuns tornam-se mais agudas, falando-se até na necessidade de organização de uma "sociedade civil global" como resposta à falência dos estados nacionais e sua arquitetura jurídica, percebemos que as instituições internacionais criadas na metade do século com o intuito de reorganizar um mundo estilhaçado pela guerra estão à beira da falência política e econômica.
Sempre soubemos que tais instituições foram criadas, nas palavras do norte-americano George Busch, pré-candidato à presidência pelo Partido Republicano, com o objetivo de garantir a supremacia econômica, política e militar dos Estados Unidos, compartilhada com uma Europa razoavelmente dividida, isto é, sem um país líder.
Ocorre que, em meio século, tal realidade nunca foi tão questionada como hoje.
E o papel do Brasil e de seus dirigentes nesse panorama ?
Talvez, parafraseando Milton Santos, quando interpretarmos o Brasil e o mundo a partir de nossa condição de brasilidade possamos ser suficientemente universais para encontrarmos forças para melhorar o nosso país, e certamente para escolhermos dirigentes à altura dos desafios que o mundo nos coloca !

quarta-feira, 8 de março de 2000

Pequenas reflexões sobre o real

O historiador Eric Hobsbawm afirmou certa vez, em uma de suas entrevistas à imprensa brasileira, que a marca de nosso tempo é viver em um "eterno presente", sem conexões que possam conduzir à alguma espécie de reflexão acerca de nossos problemas.
Porém, tal atividade - construir conexões e estabelecer referências - é absolutamente necessária nesses tempos em que as incertezas nos fazem refletir em relação ao futuro da economia brasileira após cinco anos da gestão de Fernando Henrique Cardoso à frente da Governo Federal, onde acompanhamos o aprofundamento de uma série de problemas, tais como os altos índices de desemprego, os altos níveis de endividamento das empresas, a queda do consumo, e vários outros indicadores que demonstraram nesse período um quadro real de recessão e declínio da atividade econômica produtiva.
Precisamos lembrar o que ocorreu no último período da história de nosso país, bem como o que afirmaram algumas personalidades da inteligência nacional e internacional.
Stephen Kanitz, professor da USP, com mestrado em Harvard/USA, pode ser considerado o modelo da euforia que cercou o início do Plano Real , com a estabilização da moeda e posterior eleição de FHC, quando afirmou, nove dias após o pleito presidencial de 1994, que “o novo presidente terá a sorte de governar o país com economia em ritmo acelerado de crescimento, iniciando um novo ciclo com índices de crescimento entre 7% e 8% ao ano, e que perdurará até o ano de 2005.”
Alguns meses após, mais precisamente no início de 1995, Albert Otto Hirschmann, professor de Princeton/USA, afirmava categoricamente que com a eleição de FHC o progresso se dirigia à América Latina.
Dois anos após a posse de FHC, com PFL, PPB, PMDB, PSDB e PTB em franca e pública discussão sobre a emenda da reeleição, ouvimos o economista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT/USA), Rudiger Dornbusch afirmar que a economia brasileira não estava indo a lugar algum. Alertava o governo brasileiro para a defasagem cambial, ou seja, a equiparação artificial entre dólar e real, e explicava a necessidade de retomada do crescimento econômico através do incremento das exportações com uma pequena desvalorização cambial, admitindo índices de inflação de 10% a 15% ao ano. Denunciava a “monomania” do governo brasileiro em colocar, insistentemente, a necessidade de manutenção da inflação baixa como “único elemento da agenda política/econômica nacional”.
Acompanhamos alguns meses após a reeleição de FHC em 1998, obtida ainda no primeiro turno com uma ausência vergonhosa de debate sobre os rumos da economia brasileira, e sobretudo acerca de um projeto para o Brasil, uma série de calamidades. Saímos de uma situação de estabilidade monetária para uma situação de recessão econômica em aprofundamento e instabilidade monetária, com variações bruscas da cotação do dólar ocasionando uma série de problemas às pessoas físicas e jurídicas que celebraram contratos indexados em tal moeda, aprofundando o endividamento de consumidores e empresas. Tal situação de instabilidade foi acompanhada por uma vergonhosa fuga de capitais especulativos, e grande alta nos preços, situação que demonstrou a absoluta falta de instrumentos públicos de controle do fluxo de capitais e da economia.
Enfim até o momento , o resultado do conjunto de ações orquestradas por um governo que teve e mantém maioria esmagadora no Congresso Nacional tem sido a articulação de um ambiente macroeconômico extremamente hostil aos trabalhadores, pequenos e médios empresários nacionais, e prontamente simpático - do ponto de vista das reformas constitucionais encaminhadas e recursos públicos aportados - aos interesses das empresas estrangeiras e eventuais sócios brasileiros.
Com isso estamos completando uma década sem crescimento do PIB, 150 bilhões de dólares mais endividados ( as dívidas externa e interna duplicaram), com índices de desemprego chegando a 15% da PEA ( os mais altos índices desde 1991) e, finalmente, com Municípios e Estados de joelhos perante a União sem a menor possibilidade de investimentos em políticas públicas que possam mudar tal quadro.
É com esse cenário, que notoriamente não combina com nossas potencialidades, que estamos entrando no terceiro milênio. E é a partir dele que precisamos reconhecer todos a necessidade de debate nacional sério sobre os rumos do país, partindo do pressuposto de que as ações econômicas não são fruto de uma " lei natural" e sim resultado de decisões políticas, e que só retomaremos o crescimento almejado com uma postura soberana do governo brasileiro em relação ao mercado financeiro internacional, com a agenda política nacional pautada pela necessidade de investimentos e proteção seletiva dos setores produtivos da economia nacional, buscando a correção das grandes desigualdades regionais e sociais que assolam o país.