sexta-feira, 10 de março de 2000

A crise das instituiçõe internacionais

Em 1784 Immanuel Kant redigiu "Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita", no qual, além de firmar os princípios inaugurais da filosofia da história alemã, chama a atenção para o fato de que a possibilidade de estabelecimento de uma constituição civil perfeita em um determinado Estado dependeria da resolução do problema relativo às relações externas entre os Estados.
Ou seja, da mesma forma que no plano interno do Estado, o cidadão, para desenvolver a sua insociável sociabilidade, tem a necessidade de um poder exercido segundo leis que o obrigue a obedecer à vontade universalmente válida, no plano externo os Estados deverão "sair do estado sem leis dos selvagens para entrar numa federação de nações em que todo o Estado, mesmo o menor deles, pudesse esperar sua segurança e direito não da própria força ou do próprio juízo legal, mas somente desta grande confederação de nações, de um poder unificado e da decisão segundo leis de uma vontade unificada."
Tais reflexões formuladas pelo filósofo alemão em 1784 revestem-se de suma importância neste final de século XX, diante da crise das instituições internacionais fundadas no segundo pós-guerra e desde então responsáveis pelo "equilíbrio global" do planeta: Organização das Nações Unidas, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e, recentemente, Organização Mundial do Comércio.
Tais instituições foram criadas com o objetivo de administrar uma ordem institucional global que buscava: (a) no plano político, impedir novas aventuras expansionistas de países, a partir da mediação e, em últimos casos, uso da força, em conflitos internacionais, e (b) no plano econômico, impedir novas crises monetárias como a ocorrida nas décadas de 20/30.
Ocorre que neste final de século vivemos um perigoso paradoxo: por um lado todos temos uma crescente compreensão de que os problemas que enfrentamos são, por assim dizer, cada vez mais, expressões globais das relações mantidas entre Estados, grandes empresas e sistemas financeiros internacionalizados, aprofundados pela chamada terceira revolução industrial e tecnológica; por outro, vivemos uma crescente crise de legitimidade das instituições que poderiam viabilizar uma integração global satisfatória aos diversos povos.
Acompanhamos todos a Terceira Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio preparatória à Rodada do Milênio, ocorrida em Seatlle, Estados Unidos, em dezembro de 1999, e o profundo desacordo entre as propostas comerciais dos Estados Unidos e Europa e suas efetivas práticas comerciais, ao solicitarem a abertura dos mercados internacionais através de legislações liberalizantes e, contraditoriamente, promoverem barreiras aos produtos dos países "emergentes" que competem com seus produtos locais, bem como o fracasso geral nas negociações, com os principais atores questionando a legitimidade da OMC como fórum para dirimir os conflitos econômicos entre os Estados.
Mike Moore, Diretor-Geral da OMC, chegou a afirmar, aflito diante da confusão geral que foi a Conferência, que sem o sistema multilateral de comércio o mundo seria mais pobre, seria um mundo dos blocos concorrentes e da política de poder, um mundo mais conflitivo, mais incerto.
Recentemente acompanhamos a disputa entre os europeus e os norte-americanos em torno da direção do Fundo Monetário Internacional, com o veto dos segundos ao nome oferecido pelos alemães - um teuto-brasileiro, diga-se de passagem, pois Caio Koch-Weser nasceu no Paraná - , provocando uma crise diplomática ainda não resolvida, cujas razões encontram-se para além do nome sobre o qual recairá a responsabilidade do cargo, mais precisamente na indecisão sobre o papel do FMI no próximo milênio.
A Organização das Nações Unidas vive já há algum tempo em estado de insolvência, sem que seus principais sócios façam o repasse dos recursos devidos, provocando uma crise interna entre seus quadros.
Recentemente um diplomata brasileiro afirmou a jornalistas dos principais jornais nacionais que as principais decisões emanadas de tais órgãos são definidas segundo o interesse das principais potências participantes em suas direções e comunicadas como se fossem fruto de acordos gerais.
Enfim, em um final de século em que nossas percepções acerca dos problemas comuns tornam-se mais agudas, falando-se até na necessidade de organização de uma "sociedade civil global" como resposta à falência dos estados nacionais e sua arquitetura jurídica, percebemos que as instituições internacionais criadas na metade do século com o intuito de reorganizar um mundo estilhaçado pela guerra estão à beira da falência política e econômica.
Sempre soubemos que tais instituições foram criadas, nas palavras do norte-americano George Busch, pré-candidato à presidência pelo Partido Republicano, com o objetivo de garantir a supremacia econômica, política e militar dos Estados Unidos, compartilhada com uma Europa razoavelmente dividida, isto é, sem um país líder.
Ocorre que, em meio século, tal realidade nunca foi tão questionada como hoje.
E o papel do Brasil e de seus dirigentes nesse panorama ?
Talvez, parafraseando Milton Santos, quando interpretarmos o Brasil e o mundo a partir de nossa condição de brasilidade possamos ser suficientemente universais para encontrarmos forças para melhorar o nosso país, e certamente para escolhermos dirigentes à altura dos desafios que o mundo nos coloca !

quarta-feira, 8 de março de 2000

Pequenas reflexões sobre o real

O historiador Eric Hobsbawm afirmou certa vez, em uma de suas entrevistas à imprensa brasileira, que a marca de nosso tempo é viver em um "eterno presente", sem conexões que possam conduzir à alguma espécie de reflexão acerca de nossos problemas.
Porém, tal atividade - construir conexões e estabelecer referências - é absolutamente necessária nesses tempos em que as incertezas nos fazem refletir em relação ao futuro da economia brasileira após cinco anos da gestão de Fernando Henrique Cardoso à frente da Governo Federal, onde acompanhamos o aprofundamento de uma série de problemas, tais como os altos índices de desemprego, os altos níveis de endividamento das empresas, a queda do consumo, e vários outros indicadores que demonstraram nesse período um quadro real de recessão e declínio da atividade econômica produtiva.
Precisamos lembrar o que ocorreu no último período da história de nosso país, bem como o que afirmaram algumas personalidades da inteligência nacional e internacional.
Stephen Kanitz, professor da USP, com mestrado em Harvard/USA, pode ser considerado o modelo da euforia que cercou o início do Plano Real , com a estabilização da moeda e posterior eleição de FHC, quando afirmou, nove dias após o pleito presidencial de 1994, que “o novo presidente terá a sorte de governar o país com economia em ritmo acelerado de crescimento, iniciando um novo ciclo com índices de crescimento entre 7% e 8% ao ano, e que perdurará até o ano de 2005.”
Alguns meses após, mais precisamente no início de 1995, Albert Otto Hirschmann, professor de Princeton/USA, afirmava categoricamente que com a eleição de FHC o progresso se dirigia à América Latina.
Dois anos após a posse de FHC, com PFL, PPB, PMDB, PSDB e PTB em franca e pública discussão sobre a emenda da reeleição, ouvimos o economista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT/USA), Rudiger Dornbusch afirmar que a economia brasileira não estava indo a lugar algum. Alertava o governo brasileiro para a defasagem cambial, ou seja, a equiparação artificial entre dólar e real, e explicava a necessidade de retomada do crescimento econômico através do incremento das exportações com uma pequena desvalorização cambial, admitindo índices de inflação de 10% a 15% ao ano. Denunciava a “monomania” do governo brasileiro em colocar, insistentemente, a necessidade de manutenção da inflação baixa como “único elemento da agenda política/econômica nacional”.
Acompanhamos alguns meses após a reeleição de FHC em 1998, obtida ainda no primeiro turno com uma ausência vergonhosa de debate sobre os rumos da economia brasileira, e sobretudo acerca de um projeto para o Brasil, uma série de calamidades. Saímos de uma situação de estabilidade monetária para uma situação de recessão econômica em aprofundamento e instabilidade monetária, com variações bruscas da cotação do dólar ocasionando uma série de problemas às pessoas físicas e jurídicas que celebraram contratos indexados em tal moeda, aprofundando o endividamento de consumidores e empresas. Tal situação de instabilidade foi acompanhada por uma vergonhosa fuga de capitais especulativos, e grande alta nos preços, situação que demonstrou a absoluta falta de instrumentos públicos de controle do fluxo de capitais e da economia.
Enfim até o momento , o resultado do conjunto de ações orquestradas por um governo que teve e mantém maioria esmagadora no Congresso Nacional tem sido a articulação de um ambiente macroeconômico extremamente hostil aos trabalhadores, pequenos e médios empresários nacionais, e prontamente simpático - do ponto de vista das reformas constitucionais encaminhadas e recursos públicos aportados - aos interesses das empresas estrangeiras e eventuais sócios brasileiros.
Com isso estamos completando uma década sem crescimento do PIB, 150 bilhões de dólares mais endividados ( as dívidas externa e interna duplicaram), com índices de desemprego chegando a 15% da PEA ( os mais altos índices desde 1991) e, finalmente, com Municípios e Estados de joelhos perante a União sem a menor possibilidade de investimentos em políticas públicas que possam mudar tal quadro.
É com esse cenário, que notoriamente não combina com nossas potencialidades, que estamos entrando no terceiro milênio. E é a partir dele que precisamos reconhecer todos a necessidade de debate nacional sério sobre os rumos do país, partindo do pressuposto de que as ações econômicas não são fruto de uma " lei natural" e sim resultado de decisões políticas, e que só retomaremos o crescimento almejado com uma postura soberana do governo brasileiro em relação ao mercado financeiro internacional, com a agenda política nacional pautada pela necessidade de investimentos e proteção seletiva dos setores produtivos da economia nacional, buscando a correção das grandes desigualdades regionais e sociais que assolam o país.