sábado, 8 de setembro de 2001

O século XXI e as ações afirmativas

O debate que vem sendo travado no Brasil nos últimos dias por ocasião da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, que ocorreu na África do Sul, e exacerbado pela proposta de políticas afirmativas em forma de cotas para negros nas universidades brasileiras, enseja uma reflexão mais profunda sobre o tema.
A ação afirmativa, termo em evidência na mídia nacional, surge nos Estados Unidos na década de 60 (affirmative action), na forma de iniciativas públicas e privadas no sentido de tornar reais as chances de acesso aos instrumentos de desenvolvimento para os indivíduos pertencentes aos setores que sofreram alguma espécie de preconceito que lhes tenha colocado em condições de desvantagem em relação aos outros cidadãos. Assim, determinados indivíduos, em função de sua cor, sexo e condição física, passaram a ter percentuais de oportunidades de empregos, de espaços políticos, de vagas nos estabelecimentos de ensino, articulados através de ações governamentais e privadas.
Tais iniciativas constituíram, por um lado, em uma resposta à questão colocada pelos movimentos de direitos humanos no século XX: a diferença entre igualdade formal e igualdade material. Ou seja, em que pese o fato de, desde o século XVIII, estar positivado na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão a igualdade de todos perante as leis, ainda persistiam (e persistem) diferenças materiais, ocasionadas pelo modelo econômico, pelo preconceito e pela discriminação, percebidas nas condições reais de vida dos indivíduos – pobreza, diferenças gritantes no acesso aos bens culturais e oportunidades de geração de renda. Por outro, e certamente com repercussões até os dias atuais, constituíram uma resposta ao silêncio histórico em relação à escravidão praticada preponderantemente no sul dos EUA, sob os olhos atentos do norte. Silêncio, diga-se de passagem, necessário para a criação das condições ideais para o desenvolvimento de um federalismo que garantisse a unidade nacional na mesma medida em que preservasse a grande autonomia dos estados-membros.
O estudo de algumas decisões históricas da Suprema Corte norte-americana, como, por exemplo, Dred Scott v. Sandford (1857), Plessy v. Ferguson (1896), Tribunais v. Flórida (1940), Negros v. Conselho de Educação de Topeka (1954), bem como dos debates acerca da 14º Emenda à Constituição e da Lei dos Direitos Civis de 1875, podem ilustrar melhor o caminho percorrido para a emancipação efetiva dos negros nos EUA, em meio a tergiversações hermenêuticas garantidoras da unidade nacional.
Tais questões servem para ilustrar e melhor compreender a necessidade de um debate mais profundo sobre o tema. Em primeiro lugar, acerca da qualidade e efetividade de nossas políticas públicas (acesso à universidade, por exemplo), altamente regressivas, na medida em que contribuem para afirmar a exclusão de setores historicamente alijados desses serviços. Em segundo lugar, para estabelecer um paralelo histórico, e, através dele, compreender a nossa insistente atitude em fazer ouvidos moucos para a necessidade de promover um acerto de contas com o passado, na forma de políticas afirmativas articuladas e inteligentes.