sexta-feira, 3 de dezembro de 1999

O reformismo no século XXI?

Recentemente os brasileiros tiveram a oportunidade de observar uma situação paradoxal com a participação de seu ilustre Presidente, Fernando Henrique Cardoso, no encontro ocorrido no Palazzo Vecchio, em Florença, na Itália, promovido pelo Instituto Universitário Europeu de Florença e pela Universidade de Nova York, com a participação de chefes de Estado e de Governo, em uma espécie de reunião informal entre líderes de tendência progressista – denominado "Il Reformismo nel siglo 21".
Finalmente fomos aceitos, em nossa condição de "emergentes", pelo "clube dos grandes", como uma peça fundamental no cenário internacional e de forma honrosa tivemos nosso Chefe de Estado e de Governo ao lado de Tony Blair (Inglaterra), Gerhard Schroeder (Alemanha), Lionel Jospin (França), Bill Clinton (Estados Unidos) e Massimo D'Alema (Itália) debatendo, na cidade natal de Nicolau Maquiavel (mera coincidência), soluções "progressistas" para o mundo globalizado do século XXI.
O encontro ocorreu em um contexto geral cujos principais atores - Estados Unidos, Europa e Japão - têm percebido que as conseqüências das transformações político-econômicas iniciadas na década de 80 - sob os auspícios do que convencionou-se chamar de neoliberalismo - apontam para uma realidade insustentável: a intensificação das relações comerciais não provocaram um "admirável mundo novo", mas sim aprofundaram os já velhos e conhecidos problemas - a brutal concentração da riqueza, com a exclusão de regiões inteiras do planeta das condições mínimas de vida, aumento das desigualdades sociais intra-países, com altos níveis de desemprego, e uma série de outros elementos , caracterizando uma realidade complexa cuja necessidade de busca de saídas, articulação de propostas ( cujos fundamentos, certamente, passarão pela superação dos pressupostos que orientaram o debate político-econômico do século XX) é cada vez mais premente.
A situação foi paradoxal: Fernando Henrique Cardoso defendendo perante "os outros" líderes mundiais mudanças na composição dos organismos políticos e financeiros internacionais, para "alargar sua base de legitimidade" e a imposição de regras sobre o mercado de capitais para a prevenção de crises, bem como outras mudanças estruturais capazes de gerar um processo de desenvolvimento auto-sustentável em direção a uma sociedade mais justa - e tudo isso em um encontro de "líderes progressistas".
Enquanto isso, na Terra do Pau Brasil, um relatório elaborado anualmente pelo Observatório da Cidadania apontava cortes orçamentários na área social que chegaram a 23,7% dos R$ 8,6 bilhões orçados para 1999, em função do pacote fiscal acordado pelo Brasil com o Fundo Monetário Internacional. Além disso, economistas brasileiros afirmavam que em virtude da falta de qualquer espécie de controle promovido pelo governo brasileiro sobre o fluxo de capitais para fora do país, permitiu-se a remessa de R$ 70 bilhões até o fim do mês de outubro de 1999.
Um Presidente latino-americano posando para a imprensa internacional como um líder progressista de centro-esquerda (afinal, não esqueçamos o passado de intelectual marxista, com passagem pela Université de Sorbone) , tomando iniciativas no sentido de propor alternativas aos problemas do mundo globalizado, e no plano interno liderando um governo sustentado em uma aliança fundada na tecnocracia econômica e na oligarquia dos velhos senhores, promovendo a abertura do país sem qualquer espécie de preocupação com as conseqüências para a economia nacional, gerindo um processo de concentração de recursos públicos e privados sem precedentes, sem qualquer ação coordenada que aponte a existência de um projeto de desenvolvimento que promova a resolução dos problemas sociais brasileiros.
O Brasil está necessitando urgentemente de líderes e partidos políticos que tenham a coragem de superar determinadas formas tradicionais de encarar o debate sobre o desenvolvimento e a inserção do país no cenário global, e para tanto precisamos de dirigentes que expressem a realidade de nosso país e não um Presidente feito sob encomenda para " o inglês" ver.

sexta-feira, 20 de agosto de 1999

O Mercador de Veneza e o lucro dos bancos

Um dos momentos mais belos da literatura clássica ocidental encontra-se na comédia O Mercador de Veneza de William Shakespeare, escrita em 1574, onde, além dos amores de Bassânio e Pórcia, Graciano e Nerissa, Lourenço e Jessica, encontra-se o conflito entre o banqueiro Shylock e o mercador Antônio em relação à um empréstimo cuja letra vencida estipulava como multa uma libra de carne junto ao coração do mercador.
O núcleo central da comédia, que desenvolve-se perante o Tribunal de Veneza, expressa a profunda discordância entre a visão de mundo do mercador, entre cujas virtudes encontra-se a de emprestar dinheiro sem cobrar juros, e a do banqueiro que aumenta sua riqueza com a prática da usura.
Shakespeare provavelmente não trataria desse tema em uma comédia se estivesse a produzir sua obra em fins do século XX, e muito menos ainda se acompanhasse os crepúsculos do milênio no Brasil.
O Brasil, esse gigante latino-americano que tem sido capaz de provar que as fronteiras do impossível estão muito aquém da nossa vã imaginação, produziu no primeiro semestre de 1999 mais uma aberração graças ao "talento" de nosso governo federal: com a desvalorização cambial e a elevação dos juros o lucro acumulado dos 15 bancos que divulgaram os balanços deste período passou de R$ 94,45 milhões (1º semestre de 1998) para R$ 2,56 bilhões (1º semestre de 1999), com uma evolução de 1217%.
Somente o Itaú lucrou R$ 1,09 bilhões e o Bradesco R$ 460,6 milhões, faltando ainda a divulgação de importantes bancos estrangeiros que atuam no Brasil.
Segundo Erivelto Rodrigues da Consultoria Austin Assis tal fenômeno financeiro pode ser visto com uma grande transferência de riqueza, pois muito do que o governo pagou a mais nos títulos da dívida pública, que estavam atrelados ao dólar, foram parar no cofre dos bancos.
Essa, porquê não dizer, brutal transferência de riquezas, tem sido possível graças ao "contrato" entre a oligarquia dos coronéis e o baronato financeiro que produziu Fernando Henrique Cardoso, que no intuito de levar o Brasil ao "mundo moderno" tem sido capaz de sacrificar seu sistema produtivo pela ausência de política industrial e agrícola em privilégio de um modelo que coloca o país de joelhos em relação à "bondade" do sistema financeiro mundial, concentrando renda, desempregando e condenando as gerações de brasileiros a vagarem pela imensidão da exclusão social.
A tragédia dessa realidade está no fato de não termos nenhuma Pórcia, travestida de doutor em Direito, para afirmar a necessidade de regras, regras que estabeleçam limites éticos à cobiça e à ganância.
Estará para sempre na comédia de Shakespeare a grande sentença, quando nas palavras de Pórcia, na iminência de Shylock cortar a libra de carne do peito de Antônio, profere: um momentinho, apenas. Há mais alguma coisa. Pela letra, a sangue jus não tens; nem uma gota. São palavras expressas: "Uma libra de carne". Mas se acaso derramares, no instante de o cortares, uma gota que seja, só, de sangue, teus bens e tuas terras todas, pela lei de Veneza, para o Estado passarão por direito.
O que falar diante das gerações de brasileiros que perderam e perdem seu sangue diante da ganância financeira ?

quarta-feira, 18 de agosto de 1999

Um pequeno tributo à dignidade

Nesses tempos em que nossos homens públicos adotam a política da tolerância zero em relação ao exército de famintos e à massa de sujeitos deserdados, enquanto debatem nos salões das ricas famílias, à mesa de finos talheres e iguarias, os destinos da nossa nação, faz-se necessário, por uma simples questão de sobrevivência, construir sonhos ou acalentar lembranças. E com eles e elas render homenagens àqueles que fazem a diferença, e ainda lutam.
O fato que relatarei constitui uma lembrança autônoma, dessas que fustigam a mente continuamente. Brotou pela primeira vez quando, dias após a ocorrência do fato, parei para refletir sobre nossas lideranças, dentre elas o ser humano que ocupa a Presidência da República do Brasil, um intelectual brilhante, falante de várias línguas, refinado, detentor das boas e más características de todos os que, de alguma forma, vivem das palavras e da imagem. Dentre as más, certamente, a vaidade.
Estou falando da lembrança de uma festa, onde, em meio à balbúrdia do salão apinhado de homens e mulheres um senhor inicia com passos lentos, acompanhado por seus anfitriões, o caminho que o levará à mesa de honra onde receberá o título de Doutor Honoris Causa. É o quinto título dessa espécie que receberá em terras brasileiras. Seu rosto marcado pela vida carrega um indisfarçável sentimento de cansaço, não um cansaço físico, desses que advém após horas de trabalho ou uma viagem longa, mas sim uma fadiga espiritual. Há uma clara falta de sintonia entre este senhor e o mundo de pessoas que o cercam, evidente no desconforto que procura esconder.
Afinal o homem, que não teve a fortuna de beneficiar-se de estudos adiantados, não concluindo sequer o curso ginasial - chamado liceal em seu país -, que tomou contato com os livros através das bibliotecas públicas e que se criou em uma família pobre em uma aldeia no interior de sua terra, que vagou por uma infinidade de profissões e ofícios para sustentar-se em um mundo que talvez nunca o compreenderá, receberá mais um título cercado de pompas e um assédio sufocante da imprensa por ter conseguido - grande contradição - driblar com as palavras o destino traçado pela realidade, afirmando a sua humanidade, os seus sonhos e sentimentos através de seus livros.
A cena foi paradoxal, pois em meio às palmas e assovios pesava um profundo silêncio - dois mundos chocando-se de forma constrangedora: de um lado um senhor solitário, um velho de mãos calejadas, carregando sua história simples, austera, marcada por valores e projetos, lutas e desencontros, terra e suor, por uma humildade inabalável e uma crença na necessidade de reafirmar cotidianamente a cidadania, e de outro uma massa difusa, senhores vestidos com suas togas, cerimônia, formalidades, clichês, discursos solenes e estranhos, pompas e mulheres pintadas e risonhas.
Dizem que as coisas da realidade sensível nos são dadas através de nossos sentimentos. Presenciei tudo tomado de uma estranha tristeza, observando a sociedade frívola, consumista, artificial e deslumbrada desse final de milênio em que está inserida a Universidade, este reino onde impera a rotina e a bajulação, premiando um filho de agricultores pobres e analfabetos, velho, autodidata e ainda "sujo" dos obstáculos que a vida lhe ofereceu.
Com uma fala pausada e arrastada típica do seu país, o velho agradeceu profundamente o título, expressou mais uma vez seus sonhos de que o mundo possa ser melhor e mais justo. Saiu como entrou, em um profundo silêncio, levando consigo seu mundo e sua dignidade. Dali, dentro de alguns dias, voltaria para outra ilha, a de Lanzarote, nas Canárias espanholas, onde está auto-exilado e redige de forma incansável seus textos, semeando suas parábolas e metáforas. Havia cumprido mais uma escala de compromissos desde que ganhara o prêmio máximo da literatura mundial. Agora, em suas palavras, queria ficar só.
Nos dias seguintes à concorrida cerimônia pegava-me a refletir sobre o episódio e seus significados, sobre o mundo em que vivemos com suas misérias e desencantamentos, a descrença de alguns, a razão cínica de muitos e o sentimento de profunda necessidade de reinventar o futuro para além dos significados que nos movem atualmente.
O velho chama-se José Saramago, era 18 de agosto de 1999, no Auditório da Reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina, na Ilha de Florianópolis.