quarta-feira, 18 de agosto de 1999

Um pequeno tributo à dignidade

Nesses tempos em que nossos homens públicos adotam a política da tolerância zero em relação ao exército de famintos e à massa de sujeitos deserdados, enquanto debatem nos salões das ricas famílias, à mesa de finos talheres e iguarias, os destinos da nossa nação, faz-se necessário, por uma simples questão de sobrevivência, construir sonhos ou acalentar lembranças. E com eles e elas render homenagens àqueles que fazem a diferença, e ainda lutam.
O fato que relatarei constitui uma lembrança autônoma, dessas que fustigam a mente continuamente. Brotou pela primeira vez quando, dias após a ocorrência do fato, parei para refletir sobre nossas lideranças, dentre elas o ser humano que ocupa a Presidência da República do Brasil, um intelectual brilhante, falante de várias línguas, refinado, detentor das boas e más características de todos os que, de alguma forma, vivem das palavras e da imagem. Dentre as más, certamente, a vaidade.
Estou falando da lembrança de uma festa, onde, em meio à balbúrdia do salão apinhado de homens e mulheres um senhor inicia com passos lentos, acompanhado por seus anfitriões, o caminho que o levará à mesa de honra onde receberá o título de Doutor Honoris Causa. É o quinto título dessa espécie que receberá em terras brasileiras. Seu rosto marcado pela vida carrega um indisfarçável sentimento de cansaço, não um cansaço físico, desses que advém após horas de trabalho ou uma viagem longa, mas sim uma fadiga espiritual. Há uma clara falta de sintonia entre este senhor e o mundo de pessoas que o cercam, evidente no desconforto que procura esconder.
Afinal o homem, que não teve a fortuna de beneficiar-se de estudos adiantados, não concluindo sequer o curso ginasial - chamado liceal em seu país -, que tomou contato com os livros através das bibliotecas públicas e que se criou em uma família pobre em uma aldeia no interior de sua terra, que vagou por uma infinidade de profissões e ofícios para sustentar-se em um mundo que talvez nunca o compreenderá, receberá mais um título cercado de pompas e um assédio sufocante da imprensa por ter conseguido - grande contradição - driblar com as palavras o destino traçado pela realidade, afirmando a sua humanidade, os seus sonhos e sentimentos através de seus livros.
A cena foi paradoxal, pois em meio às palmas e assovios pesava um profundo silêncio - dois mundos chocando-se de forma constrangedora: de um lado um senhor solitário, um velho de mãos calejadas, carregando sua história simples, austera, marcada por valores e projetos, lutas e desencontros, terra e suor, por uma humildade inabalável e uma crença na necessidade de reafirmar cotidianamente a cidadania, e de outro uma massa difusa, senhores vestidos com suas togas, cerimônia, formalidades, clichês, discursos solenes e estranhos, pompas e mulheres pintadas e risonhas.
Dizem que as coisas da realidade sensível nos são dadas através de nossos sentimentos. Presenciei tudo tomado de uma estranha tristeza, observando a sociedade frívola, consumista, artificial e deslumbrada desse final de milênio em que está inserida a Universidade, este reino onde impera a rotina e a bajulação, premiando um filho de agricultores pobres e analfabetos, velho, autodidata e ainda "sujo" dos obstáculos que a vida lhe ofereceu.
Com uma fala pausada e arrastada típica do seu país, o velho agradeceu profundamente o título, expressou mais uma vez seus sonhos de que o mundo possa ser melhor e mais justo. Saiu como entrou, em um profundo silêncio, levando consigo seu mundo e sua dignidade. Dali, dentro de alguns dias, voltaria para outra ilha, a de Lanzarote, nas Canárias espanholas, onde está auto-exilado e redige de forma incansável seus textos, semeando suas parábolas e metáforas. Havia cumprido mais uma escala de compromissos desde que ganhara o prêmio máximo da literatura mundial. Agora, em suas palavras, queria ficar só.
Nos dias seguintes à concorrida cerimônia pegava-me a refletir sobre o episódio e seus significados, sobre o mundo em que vivemos com suas misérias e desencantamentos, a descrença de alguns, a razão cínica de muitos e o sentimento de profunda necessidade de reinventar o futuro para além dos significados que nos movem atualmente.
O velho chama-se José Saramago, era 18 de agosto de 1999, no Auditório da Reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina, na Ilha de Florianópolis.

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